sábado, 20 de março de 2010

Pobres livros no cinema


É muito comum quando um livro vira filme alguém se apressar em dizer que o filme não é digno do conteúdo do livro. Isso é comum. É que as duas mídias, o livro e o cinema, não têm o mesmo DNA.
O livro faz parte da chamada mídia secundária. O cinema, da terciária, um tipo de mídia que nasceu a partir do invento da eletricidade.
A mídia secundária, como o livro ou as pinturas rupestres, foram inventadas pelo homem quando se moveu pelo desejo de vencer a morte, ou seja, continuar comunicando sua história mesmo depois da morte. Queríamos vencer o tempo, comunicar presença mesmo na ausência.
Vencido o tempo, já na era da mídia secundária, o homem enfrentava a dificuldade de vencer o espaço. A logística já era um problema. E no caso da comunicação, continuou sendo um sonho até surgir a eletricidade, que permitiu o surgimento de mídias que venceram o espaço, engolindo distâncias. É que, em vez de transportar o livro, o aparato todo, passou-se a transportar apenas o conteúdo. Um click e o conteúdo ganha o mundo instantaneamente.
Mas há problemas nisso.
Uma das características da mídia secundária é que ele exige contemplação, um tempo para a decifração. É por isso que você pára diante do quadro exposto no museu, diante de uma escultura, diante de um texto.
Com a mídia terciária, a vitória sobre o tempo ficou tão marcante que deixamos de lado o saudável hábito comunicacional da contemplação. É por isso que ao não decifrar as mensagens, somos devorados por elas.
A mídia estilo fast-food nos tirou o que era de mais saudável numa comunicação gourmet: a imaginação. A mídia terciária viaja por nós, nos transformando em sedentários sem criatividade.
Tudo isso para falar de filmes como Sleepers, Ensaio sobre a Cegueira, a partir de livros homônimos, no caso de Lorenzo Carcaterra e José Saramago, respectivamente. Os filmes chegam a ser pobres perto do que são os livros. E tem que ser assim mesmo. No livro, a história é para gourmets, gente que gosta de ir além da interpretação que outros fizeram. Quer privilegiar a própria interpretação, viajar num mundo de descobertas.
E não tem como falar de Saramago sem citar outras obras dele que são absolutamente apaixonantes, como Ensaio sobre a Lucidez, uma espécie de continuidade de Ensaio sobre a Cegueira, como Intermitências da Morte, A Caverna, numa referência explícita a mítica abordagem de Platão.
O fato é que no caso da comunicação, a evolução não quer dizer necessariamente, melhoria. O livro dá um mundo que jamais será roubado.


Claudemir Hauptmann

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Feliz Ano Velho (novo)


Bem, férias. E as coisas andam um pouco mais devagar, como numa narrativa de caráter intimista. Para quem gosta de um ritmo, digamos, mais intenso, férias tem um pouco de tortura.
Passa-se semanas esperando por ela. E antes que esteja no meio delas, já se sente o tédio do ócio. E não me venha com aquela do ócio criativo a que refere-se o anarquista Domenico Demasi.
Hoje é Dia 6 de janeiro. Data em que a galera mais crédula desmonta os enfeites de Natal e rolam aquelas típicas reportagens feitas no interior sobre o tal Dia de Reis (nossa, como o jornalismo está cada vez mais repetitivo, no melhor estilo “mais do mesmo”).
Para quem não sabe, essa é a data em que, segundo a tradição cristã, os três reis magos teriam levado presentes a Jesus Cristo. Alguns falam em Folia de Reis. Gosto mais desse nome. Até porque há muito tempo alguns reis (letra minúscula mesmo), fazem uma folia danada nesse país afora, especialmente a partir de alguns corredores e gabinetes em Brasília e outros centros de poder. E ao contrário daqueles reis da tradição cristã, esses a que me refiro, bem mais mundanos, fazem uma folia danada mas não para dar presentes. Eles querem mesmo é receber presentes. E se não recebem, tomam mesmo, na mão grande. Pior para nós, crédulos, é que nessa folia ninguém fica para cristo...
Mas sinceramente não queria falar disso no primeiro post do ano. Então, vou falar do ano novo...Não...não dá.
E se falar do Ano Velho. Mas não com a característica irônica típica dos cronistas (vaidosos) que gostam de marcar território desejando feliz ano velho para dizer que, a partir de um feeling aguçado, o ano novo será igualzinho ao velho, uma vez que certas práticas (como aquelas dos reis mundanos a que me referi a pouco) serão mantidas pelos novos dias...
Para manter-me mais fiel à proposta deste blog, vou desejar a todos: Feliz Ano Velho.
Refiro-me, obviamente, a um livro que virou best seller tupiniquim nos anos 80, de Marcelo Rubem Paiva. O autor conta sua história de forma muito legal, num texto agradável. Ele se arrebentou todo aos 20 anos ao mergulhar num lago rasinho. Ficou paraplégico. E o livro vai por aí, revelando momentos inesquecíveis. Eu me diverti muito com algumas passagens, como a que uma velha passa por ele e dá uma nota de cinqüentão. Alma caridosa que confundiu o paraplégico com mendigo. Com certeza uma dessas pessoas comuns que temos país afora, que vivem confundindo alhos com bugalhos. Outra muito legal é a que ele narra todo o esforço que fez para movimentar o braço para, vitorioso, tocar a bunda da enfermeira.
O livro consegue mostrar essa experiência de vida sem cair na vala comum desse tipo de relato, que quase sempre cai na pieguice, na linha da auto-ajuda. Nada disso. Feliz Ano Velho é um livro que vale a pena. Um cara quebrado mais inteiro que muita gente que se acha inteira.
E para quem gosta de um pouco mais de história, o autor, Marcelo, é filho do deputado Rubem Paiva, uma das muitas vozes caladas durante a ditatura militar. O sucesso do livro foi tamanho que virou filme algum tempo depois. No elenco do filme, nomes como Marcos Breda e Malu Mader.
Mais do que saudade de algumas de minhas antigas leituras, esse post me faz mesmo sentir saudade de um velho companheiro daqueles anos 80, o Clube do Livro. Foi através dele, recebendo catálogos em casa, muito antes das facilidades do mundo digital, é que adquiri bons companheiros para enfrentar a insônia. Feliz Ano Velho foi um destes companheiros. Por isso procuro sempre não falar mal da insônia, que me levou a lugares incríveis.
Agora me desculpem, mas preciso ir. Vou ler alguma coisa...